Pode morar no meu colo


Carrego na memória
O cheiro doce das lembranças
Cada pequeno passo até chegar a este marco —
Juntos, permanecemos aqui

Nos olhos marejados
Com os cabelos molhados
Os pés descalços
E as mãos entrelaçadas

Os descaminhos contamos nos dedos
Nossa luta quase árdua, porém lutada lado a lado
Nemou-se fardo leve
O agora nos compõe, nele construímos nosso lar
Tudo que vivemos fez da nossa história
Um poético pedacinho de nós

Sagrado resgate — memórias e marés

Vejo a menina que, na calada da noite,
Descalça e desnuda de qualquer razão
Foi de encontro a um universo paralelo em busca de si
E descobriu o inimaginável

A saudade que ancora no cais do meu peito
É sempre fruto do mesmo sentimento:
Aquele que transborda no mar dos seus olhos

Reina nessas minhas terras
A beleza da luz da lua beijando sua pele
Como quem abençoa o que toca

Não me refiro aos dias passados
Mas confesso guardar boa parte deles em meu coração

Dos devaneios que cercam meu pensar,
Guardo as inspirações com cheiro doce e gosto de infinito
Cheias do tempo presente: embalado na beleza das tulipas
Chegam até minhas mãos no abstrato que existe
Na sala de jantar do meu lar.

Sobre o processo de esquecer a culpa de viver


As lembranças escorrem das mãos
Desenho a saudade
Em um quadro preenchido
Com cores inventadas

A paz é uma sentença
É seguro estar aqui
Posso provar o sabor da calmaria
Com a própria pele

Sinto, não há surpresas
O previsível agora é meu novo lar
Não há do que querer fugir

A voz que insiste em não querer existir


Não importa de que lugar esse eco vem,
Pois ele me alcança
Atinge meus tímpanos como flecha
De quem sangra até quem faz sangrar

Meu sentir torna-se uma névoa caótica
Sinto apenas a minha desordem visceral
Um caos que, visto de longe, até parece bonito
Mas, daqui, sendo eu, me inunda até fazer afogar

Não existe fôlego que me salve de mim.

As mãos que tentam fugir do silêncio
Deixam palavras escritas
Na tentativa de trazer uma ponta de esperança ao meu fim do túnel
Mas, ao contrário disso, se desenham como se fossem sentenças

Como posso me salvar de mim?
Fugir da roupa que me veste, sendo ela minha própria pele?
Dos desalentos do mundo, das dores do viver,
Das hipocrisias que nascem com o romper da vida?

Sinto-me uma dessas farsas
Que aprendeu a parecer inteira
Mesmo quando o avesso grita pra existir

aspas
A cada nova linha que completo
Um novo amanhecer se faz aqui
Trazendo luz pra minha escuridão interna

As linhas em branco
Me concedem o poder
De traduzir as fagulhas do meu caos interno
E me aproximar cada vez mais de mim

(Em branco, escrito em 25 de abril de 2023)